Pedagogia camponesa: mística e segredos da luta por direitos. Por frei Gilvander Moreira[1]
Mística de acolhida, na sombra de uma oiticica, na aula inaugural da EFA Jaguaribana, em abril de 2018 | Foto: Alisson ChavesÉ emancipatória a força e a liberdade interior que fez
o jovem camponês Sem Terra Oziel Alves Pereira, de 17 anos, durante o massacre
de Eldorado dos Carajás, no Pará, dia 17 de abril de 1996, mesmo sob tortura,
continuar gritando, até ser massacrado: “Viva o MST!” “A mística também evoca a materialização (geralmente simbólica) desse
sentimento na beleza da ambientação dos encontros, nas celebrações, na animação
proporcionada pelo canto, pela poesia, pela dança, pelas encenações de
vivências que devem ser perpetuadas na memória, pelos gestos fortes, pelas
homenagens solenes que se prestam aos combatentes do povo; lembra os símbolos
do Movimento, seus instrumentos de trabalho e de resistência, seus gritos de
ordem, sua agitação, sua arte” (CALDART, 2012, p. 213).
Em Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, MG, a
música Religião Libertadora, do padre
Zezinho, tem animado a mística das celebrações dos Sem Terra na luta pela
terra: Diz a música: “É por causa do meu
povo machucado que acredito em religião libertadora. É por causa de Jesus
ressuscitado que acredito em religião libertadora ...”. Impossível
compreender a luta pela terra em Salto da Divisa, nos últimos 30 anos, sem a
presença marcante da Irmã Geraldinha (Geralda Magela), das Irmãs Dominicanas, e
sem as frequentes celebrações religiosas na linha da Teologia da libertação,
como canta, por exemplo, uma música que se tornou o hino da luta pela terra em
Salto da Divisa: “Vem Senhor Jesus, vem
conosco caminhar, ilumina nossa luta para essa terra conquistar (bis). Em toda
a América Latina há muita gente sofrida em busca de libertação, muitos
lavradores sem um pedaço de chão. Somos povo de Deus, em toda essa América Latina,
a caminho da libertação. Queremos lutar para partilhar o pão. Somos povo de
Deus, nesta pátria tão querida, queremos evangelização, para essa terra ser de
gente, semente no chão” (HINO DA COMUNIDADE CRISTO LIBERTADOR do P.A Dom
Luciano Mendes, em Salto da Divisa, MG).
Com a pedagoga Rosely Caldart afirmamos que “a mística é exatamente a capacidade de
produzir significados para dimensões da realidade que estão e não estão
presentes, e que geralmente remetem as pessoas ao futuro, à utopia do que ainda
não é, mas que pode vir a ser, com a perseverança e o sacrifício de cada um”
(CALDART, 2012, p. 213). Na perspectiva da Comissão Pastoral d Terra (CPT), do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento Indígena e dos Povos e
Comunidades Tradicionais, na Teia dos Povos, em sintonia com a Teologia da
Libertação, a mística é emancipatória também porque desperta nos sujeitos que
lutam pela terra um jeito de lidar com as dimensões mais profundas da realidade
que, muitas vezes, são imperceptíveis quando ficamos presos a racionalismos ou
idealismos. Pela mística praticada pela CPT, MST e Movimentos Sociais as
melhores luzes e forças do passado e do futuro potencializam o presente de luta
pela terra na terra (MOREIRA, 2015).[2]
O passado e o futuro se fazem presentes no presente, quando os sujeitos são
enlevados pelo encanto da mística revolucionária e, portanto, emancipatória.
A luta pela terra em perspectiva emancipatória implica
necessariamente também emancipação
ecológica, o que passa pela mudança radical da agricultura capitalista e
pela superação do agronegócio com uso indiscriminado de agrotóxico e inclui a
implementação da agricultura camponesa com plantações em sistema agroecológico,
o que é algo mais do que apenas adubação orgânica, significa um estilo de vida
que leva a uma relação respeitosa com a terra, com as águas e com toda a
biodiversidade.[3]
Emancipatória, também, é a formação constante e
permanente para o cultivo dos valores humanos que sustentam a perseverança na
luta pela terra e por território. Formação que acontece em um processo que
envolve estudo, convivência na luta, troca de experiências entre quem está na
luta pela terra e por território e, acima de tudo, participação em todas as
lutas coletivas por direitos. A pedagogia camponesa é exercitada muito mais
pelo exemplo do que pela teoria. Por isso, também, a importância da troca de
experiência, pois uma experiência significativa vista com os próprios olhos por
um/a camponês/a cativa e desperta o acolhimento de propostas boas que, se
fossem apenas comunicadas de forma teórica com argumentação racional,
provavelmente não teriam a repercussão de uma experiência vivenciada. A atuação
da CPT, do MST, dos outros Movimentos Sociais, dos Povos Originários e Comunidades
Tradicionais emancipa, ainda, porque de alguma forma consegue transformar o
sem-terra em Sem Terra, o desterritorializado em sujeito com território, o que
de ‘coitado que pede ajuda’ é elevado ou se eleva a ‘trabalhador/a camponês/a –
indígena ou integrante de Povo Tradicional - que tem direito e merece respeito’
e passa a ser respeitado pelas forças políticas da sociedade como um exemplo de
sujeito cidadão emancipador a ser seguido.
Para a CPT, o MST, o Movimento Indígena e os Povos Tradicionais a luta pela terra e por território é mais do que luta pela terra e por resgate de território, pois inclui: a) a luta pela conquista da terra e retomada de território, a resistência na terra e nos territórios com administração autônoma segundo os princípios da autonomia dos Povos que passa por agroecologia, trabalho coletivo e sustentabilidade ecológica; b) a luta por educação para além do capital, educação do campo de forma emancipatória; e c) exige abraçar a luta pela transformação social, política e econômica da sociedade na perspectiva da construção de uma sociedade para além do capital: uma sociedade socialista, sem exploração de classe e sem exploração do trabalho da classe trabalhadora e nem expropriação das terras da classe camponesa, dos Povos Originários e nem dos Povos Tradicionais.
Referências
CALDART,
Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
MOREIRA, Gilvander Luís. Entre sinais e conflitos, se requer opção de fé (Jo 5,1-8,5). In: SABOYA, Marysa Mourão (Org.). Amar sem limites, nas trilhas das comunidades do Discípulo Amado. São Leopoldo: CEBI, p. 50-65, 2015b.
23/05/2023
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto
tratado, acima.
1 - “Não ao Marco Temporal! Demarcação de todos os
Territórios Indígenas e Tradicionais, JÁ!” Enc. POVOS
2 - Ato Público no início do Encontro de Povos Tradicionais
de MG: em defesa dos Territórios e Consulta
3 - Audiência Pública na ALMG: ilegalidades e violências da
mineradora Santa Paulina em Ibirité, MG!
4 - Preservação total, integral, 100% da Mata do Jd. América
em BH/MG: Dever, direito e necessidade-vida
5 - Mineradora Sta Paulina em Ibirité/Sarzedo/MG acabará c
água de 700 mil pessoas /Agricultura Familiar
6 - Ato Público e Marcha denuncia violações aos direitos do
Quilombo do Campinho em Congonhas, MG
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em
Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel
em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto
Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e
Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação
Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Cf. MOREIRA, Gilvander Luís.
Entre sinais e conflitos, se requer opção de fé (Jo 5,1-8,5), p. 50-65,
especialmente p. 55 a 59, onde tratamos da partilha de pães, pedagogia que
liberta e emancipa (Jo 6,1-15). In: SABOYA, Marysa Mourão (Org.). Amar sem limites, nas trilhas das
comunidades do Discípulo Amado. São Leopoldo: CEBI, 2015b.
[3] Exemplo disso está retratado no
vídeo documentário “Resistir e saber cuidar – experiências agroecológicas em
Assentamentos da Reforma Agrária”. Direção e roteiro de Cecília Figueiredo.
Brasília: MST, Triângulo Produções, 2006. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-oedHfalprM
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