“Não se pode despejar comunidade consolidada”. Por Frei Gilvander Moreira[1]
Povo da Ocupação-Comunidade-Bairro Pingo D’água, de Betim/MG, acampado pela 2a vez na Câmara Municipal de Betim: luta por moradia e par impedir despejo. Derrubar o veto do prefeito Medioli e promulgar a Lei do PL 162, que abre caminho para se fazer REURB-S na Comunidade é caminho justo e necessário. 22/8/22. Foto: Frei GilvanderExistem
no campo e na cidade, milhares de Ocupações no Brasil, em luta pela terra e por
moradia, diante de decisões judiciais que manda reintegrar na posse pretensos
donos sem comprovação de posse anterior e sem verificar se cumpria ou não a
função social da propriedade. Diante destas decisões judiciais para despejar as
famílias e entregar o terreno a uma empresa ou a uma prefeitura, o povo grita
na luta por direitos: “Somos uma
Comunidade-Bairro em franco processo de consolidação. Ocupamos por necessidade
e porque o terreno estava ocioso sem cumprir sua função social.” Em
comunidades em processo de consolidação não há que se falar em despejo, pois o
direito à moradia das centenas de pessoas é muito mais abrangente do que uma
ação judicial de reintegração de posse movida por uma empresa ou prefeitura. A
dignidade humana e o respeito às famílias precisa estar acima dos interesses do
grande capital. Nas comunidades em desenvolvimento, o terreno ocioso
reivindicado não existe mais, pois o que existe no local é uma Comunidade
organizada em franco processo de consolidação, dando função social à
propriedade que antes estava jogada às traças.
Propor
derrubar moradias construídas com muito suor, trabalho, dia e noite, ao longo
de vários anos, para entregar o terreno cheio de escombros com a demolição das
residências para que uma empresa possa fazer no local um grande empreendimento
econômico para lucrar muito é inadmissível e injustiça brutal. Todo despejo é
desumano e brutal, pois além de demolir moradias, destrói sonhos, projetos de
vida e causa traumas imensuráveis. É ofensiva a proposta de prefeitos de
oferecer apenas aluguel social, que é injusto e insuficiente e muitas vezes
para de pagar após alguns meses. Oferecer terreno para construir casinhas “caixotes”
de 36 metros quadrados é violentar a dignidade das famílias. O justo e
necessário é a Câmara de Vereadores aprovar e promulgar Lei que abre caminho
para se fazer REURB-S (Regularização Fundiária Urbana de Interesse Social) da
área ocupada há vários anos pelas famílias. Justo é o prefeito desapropriar a
área ocupada e fazer REURB-S na Comunidade garantindo a vida digna e paz para
as famílias. Se o poder público e o mercado já reconhecem as Ocupações, não se
pode falar em despejo, por serem Comunidades que geralmente têm ruas
organizadas, têm redes de energia e água, muitas famílias pagam contas mensais de
água e energia. Há coleta de resíduos sólidos pela prefeitura. As famílias são
atendidas nos postos de saúde, UPAs e hospital da cidade. As crianças e
adolescentes estudam em escolas municipais e estaduais. Enfim, trata-se de ocupações
que se ternaram comunidades organizadas, bairros em franco processo de
consolidação.
Temos
muitos exemplos que podemos citar de casos em que o Estado (Poderes Judiciário,
Executivo e Legislativo) reconheceu a Comunidade e o despejo não aconteceu. Por
exemplo, em abril de 2016, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Recurso
Especial 1.302.736, confirmou decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais
(TJMG) que negou reintegração de posse contra Ocupação que tinha se tornado
bairro em Uberaba, MG. Diante da existência de inúmeras edificações e moradores
no local, após tantos anos de disputa judicial, a justiça mineira reconheceu e
negou o direito à reintegração de posse em prevalência do interesse público,
social e coletivo. A decisão judicial de reintegração foi convertida em perdas
e danos a ser paga em dinheiro. Em voto repleto de doutrinas, teses e
precedentes, o ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, discorreu sobre os
princípios da proporcionalidade e da ponderação como forma de o Judiciário dar
aos litígios solução serena e eficiente. O ministro relator ressaltou que “o
imóvel originalmente reivindicado
não existe mais, já que no lugar do terreno antes objeto de comodato surgiu um
bairro com vida própria e dotado de infraestrutura urbana.” Segundo a decisão
do STJ, não pode ser desconsiderado o surgimento do bairro, onde inúmeras
famílias construíram suas vidas, sob pena de cometer-se injustiça maior a
pretexto de fazer justiça.([2])
Outro
caso julgado pelo STJ é o do Acórdão da Favela do Pullman, em Santo Amaro, SP,
que inicialmente era área destinada a um loteamento, mas foi ocupada pouco a
pouco e se tornou um bairro em franco processo de consolidação e o Poder
Judiciário reconheceu ao final o “perecimento do direito à propriedade”, ou
seja, negou o direito de reintegração. Em 2005, o ministro do STJ, Aldir
Passarinho Júnior (Relator) decidiu negar a reintegração de nove lotes com 30
famílias na Favela do Pullman. Na decisão, o ministro Aldir afirma: “Trata-se
de favela consolidada, com ocupação iniciada há cerca de 20 anos. Está dotada,
pelo Poder Público, de pelo menos três equipamentos urbanos: água, iluminação
pública e luz domiciliar. Fotos mostram algumas obras de alvenaria, os postes
de iluminação, um pobre ateliê de costureira etc., tudo a revelar uma vida
urbana estável. No caso da Favela do Pullman, a coisa reivindicada não é
concreta, nem mesmo existente. É uma ficção. Os lotes de terreno reivindicados
e o próprio loteamento não passam, há muito tempo, de mera abstração jurídica.
A realidade urbana é outra. A favela já tem vida própria, está, repita-se,
dotada de equipamentos urbanos. Lá vivem muitas centenas, ou milhares, de
pessoas. Só nos locais onde existiam os nove lotes reivindicados residem 30
famílias. Lá existe uma outra realidade urbana, com vida própria, com os direitos
civis sendo exercitados com naturalidade. A realidade concreta prepondera sobre
a 'pseudo-realidade jurídico-cartorária'. Segundo o art. 77 do Código Civil,
perece o direito perecendo o seu objeto. E nos termos do art. 78, I e III,
entende-se que pereceu o objeto do direito quando fica em lugar de onde não
pode ser retirado. Razões econômicas e sociais impedem a recuperação física do
antigo imóvel. O desalojamento forçado de trinta famílias, cerca de cem pessoas
– na Favela do Pullman -, todas inseridas na comunidade urbana muito maior da
extensa favela, já consolidada, implica uma operação cirúrgica de natureza
ético-social, sem anestesia, inteiramente incompatível com a vida e a natureza
do Direito. É uma operação socialmente impossível. E o que é socialmente
impossível é juridicamente impossível. Em cidade de franca expansão
populacional, com problemas gravíssimos de habitação, não se pode prestigiar o
comportamento de proprietários que deixam o terreno abandonado sem cumprir sua
função social e depois exigem judicialmente reintegração de posse.”
Tal
julgado do STJ é inclusive citado pelo TJMG, que em julgamento de recurso (nº
1.0024.13.304260-6/001) envolvendo as ocupações da Izidora, em Belo Horizonte,
registrou que o direito de propriedade deve ter
correspondência no atendimento à função social, que lhe é inerente, de maneira
a buscar a proteção da dignidade humana, fundamento da República (art. 1º, III,
da Constituição Federal). Concluiu o desembargador Correia Júnior que prevalece
o postulado da dignidade humana em se tratando de questões que envolvem a
coletividade da população, mormente por se tratar de desocupação de casas, em
que vivem idosos e crianças, com o uso prematuro e inadmissível da força
policial, não devendo ser concedida ordem de despejo que favorece o direito de
propriedade com violação aos direitos fundamentais.
23/08/2022
Obs.: As videorreportagens nos
links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 -
“Quando pus porta na nossa casa e parei de pagar aluguel, a vida.” Ocupação
Pingo D’água, Betim, MG
2 - “Não
aceitamos a MRV e Medioli nos despejarem. REURBs, JÁ!” (Ocupação Pingo D’água,
Betim/MG Vídeo 4
3 - Por
que não pode haver despejo de 114 famílias da Ocupação/bairro Pingo D’água,
Betim, MG? Vídeo 3
4 -
"Exigimos Medioli na Mesa de Negociação! DESPEJO, NÃO!" Ocupação
Pingo D'água, Betim, MG. Vídeo 2
5 - Celebração
de Pentecostes e Dia do Meio Ambiente na Ocupação/bairro Pingo D’água, Betim,
MG. Vídeo 1
6
- Manifesto CLAMOR da Ocupação Pingo D’água, Betim/MG.104
famílias, despejo pelo MRV? E Apoio. Vídeo 6
7 - Frei Gilvander: “CEJUSC e
Mesa de Negociação, assumam a Ocupação Pingo D’água, Betim, MG!” Vídeo 5
8 - "Prefeito e
vereadores de Betim/MG, FAÇAM REURB p Ocupação Pingo D'água p impedir
despejo." Vídeo 4
9 - Cadê Direitos dos Pobres
da Ocupação Pingo D'água, Betim/MG, sob ameaça de despejo por MRV? Vídeo 3
10 - “Nossa casa, nosso
sonho!” “Ocupamos por necessidade”. Ocupação Pingo D’água, Betim/MGX MRV. Vídeo
2
11
- Em Betim/MG, Povo do Pingo D’água proibido de acessar água, banheiro, lar e
ao relento na Câmara
12
- Para derrubar veto do Medioli, Povo da Ocupação Pingo D’água, Betim/MG,
acampado na Câmara de novo
[1] Padre da
Ordem dos Carmelitas; doutor em Educação pela Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais (FAE/UFMG); licenciado e bacharel em
Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); bacharel em Teologia pelo
Instituto Teológico São Paulo (ITESP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício
Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da Comissão Pastoral da
Terra/MG (CPT), assessor do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI) e das
Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no Serviço de Animação Bíblica
(SAB), em Belo Horizonte, MG; colunista de vários sites; e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook:
Gilvander Moreira III