terça-feira, 27 de junho de 2023

Carta aos Efésios: todos são família de Deus. Por frei Gilvander

 Carta aos Efésios: todos são família de Deus. Por frei Gilvander Moreira[1]


Em setembro de 2023, a “Carta aos Efésios”[2] será o libro bíblico do mês da Bíblia. Neste terceiro pequeno texto partilhamos mais algumas chaves de leitura para uma compreensão sensata e libertadora da “Carta aos Efésios”. A expressão “em Cristo” é repetida na “Carta aos Efésios” onze vezes.[3] Sinal da extraordinária ênfase que o autor da “Carta aos Efésios” dá à pessoa de Jesus Cristo. “Em Cristo”, somos abençoados, escolhidos, perdoados; temos herança, esperança, fé, confiança; experimentamos o poder de Deus, que ressuscitou Cristo, somos moradas de Deus. Tudo “em Cristo”! Por outro lado, “sem Cristo”, éramos errantes. Ser como Cristo e agir como Ele é o que o autor da “Carta” pede de nós.

Libertar “pelo sangue” é libertar doando a Vida. Por meio do sangue de Cristo é que fomos libertos e n’Ele nossas faltas foram perdoadas” (Ef 1,7). Este versículo está em contexto de louvação litúrgica, mas não pode ser compreendido como se fizesse referência a uma libertação ritual e mágica e a um perdão exclusivamente ritualístico. O sentido é ético: postura libertadora no jeito de conviver, agir e lutar de Jesus, o Cristo, que “nos liberta pelo seu sangue” (Ef 2,13), isto é, pela vida doada ao próximo/a, principalmente aos empobrecidos. Jesus viveu no nosso meio a partir do princípio da misericórdia: colocando o outro, que é injustiçado, em primeiro lugar. Ou seja, pensando e agindo com Opção pelos empobrecidos e escravizados/as. Libertar “pelo sangue” significa libertar doando a vida ao longo de toda a vida, até ao martírio, se for necessário.

Trata-se, eminentemente, de uma postura ética, um jeito de viver, conviver e lutar. Não viver de forma egoísta, mas agindo, cotidianamente se doando, para que “todos/as tenham vida em abundância” (Jo 10,10), o que salva muita gente, não de forma ritualística e mágica, mas nas entranhas das relações humanas e sociais. Sangue é muito mais que sangue, é vida doada. “Tomai, todos, e bebei o meu sangue” (Mc 14,22-25; Lc 22,14-20; Mt 26,26-29; 1 Cor 11,24-28), ouvimos na celebração da eucaristia, a ceia do senhor. Isso quer dizer: seja como Jesus Cristo foi. Viva a vida se doando e não apenas doando coisas. Aliás, as primeiras comunidades cristãs, ao celebrar a eucaristia, faziam questão de recordar: “Fazei isto em memória de mim” (1 Cor 11,24). Fazer o quê? O que Jesus fez. O que Ele fez? Viveu a vida se doando por todos/as, construindo fraternidade social e ecológica.

Somos todos/as da família de Deus. A “Carta aos Efésios” afirma a bondade, o amor e a misericórdia de Deus, bem como a centralidade de Cristo na nossa vida, enaltecendo a cidadania de todos/as, sem exceção, como Povo de Deus: “Vocês, portanto, já não são estrangeiros nem hóspedes, mas concidadãos do povo de Deus e membros da família de Deus” (Ef 2,19). Isto é, “Povo de Deus” não está restrito à linhagem cultural judaica, mas abarca todos os povos, sem exceção, irmanando todos/as como ‘família de Deus’. Eis a perspectiva universalista apregoada na “Carta aos Efésios” apontando que a inculturação em todas as culturas é o caminho santificador, libertador.

Que tipo de comportamento é digno de uma pessoa cristã? “Peço que vocês se comportem de modo digno da vocação que receberam” (Ef 4,1b). O autor da “Carta aos Efésios” exorta aos seus destinatários/as, que somos todos/as nós, a um “comportamento digno da nossa vocação”, da nossa missão, diríamos hoje. Que tipo de comportamento deve ser considerado digno para uma pessoa cristã? Segundo a “Carta aos Efésios” é o comportamento de quem demonstra estar profundamente ligado ao mistério de amor que nos envolve e reflete as atitudes e os gestos de Jesus, que viveu se doando por todos/as, sem discriminar ninguém e, pelo agir, que testemunha a imagem de um Deus rico em amor e misericórdia. Por outro lado, quem vive falando o nome de Deus, invocando a misericórdia de Deus, mas ao mesmo tempo incita à luta para destruir o regime democrático e instalar ditadura; usa arma e defende o armamentismo, considerando o outro um inimigo em potencial; é racista, misógino, homofóbico; discrimina pessoas de religião de matriz africana ou indígena; incita ao ódio e à intolerância – esse tipo de pessoa não está se comportando de forma digna, conforme apregoa a “Carta aos Efésios”.

Ser humilde, sim; humilhado, não! “Sejam humildes, amáveis, pacientes e suportem-se uns aos outros no amor. Mantenham entre vocês laços de paz, ...” (Ef 4,2-3a). Ser humilde, sim; jamais, humilhado. Amável, sim; jamais, “saco de pancada” ou bobo; paciente, sim, diante do que é impossível mudar, como, por exemplo, uma doença que carcome a pessoa e a deixa em estado terminal. Nesta situação só nos resta aceitar e ter paciência. Entretanto, não podemos usar a exortação da “Carta aos Efésios” para praticar ou encorajar outros à resignação diante de injustiças e opressões.

A exortação “suportem-se uns aos outros no amor” significa: respeitem-se uns aos outros no amor, reconhecendo o que há de melhor no outro e reconhecendo, também, nossos limites e contradições. Isso para viabilizar uma convivência social justa, respeitosa e sadia. Que a busca da paz seja a bússola na nossa convivência social e ecológica. Entretanto, paz como fruto da justiça e jamais pacificação, que é, muitas vezes, “esparadrapo” em cima de ferida. Em nome da pacificação, no Brasil houve anistia geral e irrestrita aos generais ditadores e aos torturadores da ditadura militar-civil-empresarial de 1964 a 1985, que fez desaparecer, torturou, exilou e assassinou centenas de lideranças que eram “o cérebro” da sociedade brasileira. A busca pela verdadeira paz envolve luta por justiça, o que não é vingança e nem anistia a criminosos. Na mesma linha, o autor da “Carta” enfatiza: “Sejam bons e compreensivos uns com os outros, perdoando-se mutuamente, assim como Deus perdoou a vocês em Cristo” (Ef 4,32), pois todos/as, sem exceção, são família de Deus.

Obs.: No próximo texto, o quarto, continuaremos esta reflexão sobre a “Carta aos Efésios”.

27/06/23

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG - Set/2022

2 - Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

3 - Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

4 - Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Optamos por colocar entre aspas “Carta aos Efésios” ao longo do texto, porque em uma análise mais acurada constatamos que, de fato, não se trata de uma Carta e nem é destinada apenas à Comunidade Cristã de Éfeso.

[3] (Ef 1,3.4.11.12 (2 vezes).13.20; 2,12.21.22; 3,12; 4,32).

terça-feira, 20 de junho de 2023

Carta aos Efésios: muros, não; pontes, sim! Por frei Gilvander

 Carta aos Efésios: muros, não; pontes, sim! Por frei Gilvander Moreira[1]


A “Carta aos Efésios”[2] foi escolhida para ser assunto de reflexão nas Comunidades Cristãs no mês da Bíblia de 2023, setembro. Eis mais um pequeno subsídio. Organizado em seis capítulos, inserido no Novo Testamento Bíblico entre duas Cartas Paulinas – Gálatas e Filipenses – o inspirado texto bíblico chamado “Carta aos Efésios” não é carta, pois não é endereçada, exclusivamente, a um destinatário específico. A “Carta” não é “aos Efésios”, pois não é dedicada apenas à comunidade cristã da periferia da grande cidade de Éfeso. A expressão “em Éfeso” (Ef 1,1), no início da “Carta”, falta em diversos manuscritos antigos. A “Carta aos Efésios” é endereçada, provavelmente, a uma Rede de Comunidades Cristãs fora da Palestina/Israel, entre as quais por extensão, também endereçada às comunidades cristãs atuais.

O texto não foi escrito pelo apóstolo Paulo, mas sim por um discípulo de Paulo, provavelmente na última década do século 1º da Era Cristã. Portanto, precisamos evitar a leitura da “Carta aos Efésios” ao pé da letra, de forma literal e fundamentalista. Aliás, uma leitura superficial, pinçando versículos da “Carta” pode induzir-nos a compreensões antagônicas com a finalidade da mesma, tais como justificar o machismo, o patriarcalismo e a relação social escravocrata (Senhor de escravos). Compreendidos, porém no contexto, tais versículos não abonam tais injustiças.

Precisamos evidenciar e considerar o contexto político, social, econômico, cultural e religioso que está como pano de fundo deste texto bíblico. A Carta aponta Jesus Cristo como “pedra fundamental” (Ef 2,20), pois testemunha e ensina um jeito de ser, de viver e conviver. E mais: de lutar e ser instrumento na construção de uma sociedade justa economicamente, solidária socialmente, plural e respeitosa culturalmente, com uma ética libertadora, que seja expressão do reino de Deus querido por Jesus e pelo Deus da vida.

A “Carta aos Efésios” está organizada em duas partes: 1ª unidade – Ef 1-3, que apresenta vários temas teológicos e 2ª unidade – Ef 4-6, que desenvolve o anúncio do Evangelho de Jesus Cristo, fazendo uma série de exortações éticas e teológicas. A abertura da “Carta” nos induz a pensar que o escrito seja do apóstolo Paulo, pois traz abertura semelhante às Cartas Paulinas (Ef 1,1): Paulo, não atrelado ao grupo dos doze, mas “apóstolo de Jesus Cristo pela vontade de Deus”. A “Carta” inicia-se com uma louvação litúrgica (Ef 1,3-14): “Bendito seja o Deus e Pai de nosso senhor Jesus Cristo”

A “Carta aos Efésios” se destina, primordialmente, a comunidades cristãs mistas de pessoas oriundas do mundo cultural judaico e uma maioria de pessoas oriundas do mundo cultural gentílico, conforme nos informa Ef 2,11: “Lembrem-se de que vocês, pagãos de nascimento, eram chamados incircuncisos por aqueles que se dizem circuncidados, devido à circuncisão que se faz na carne com mão humana.” Portanto, a “Carta” é prioritariamente dedicada, em um primeiro momento, a gente considerada de origem impura e estrangeira. É para “os de fora”, os que estão aderindo ao Evangelho de Jesus Cristo que o autor da “Carta” faz a exortação a serem exemplos de fraternidade em uma sociedade com relações sociais escravocratas do Império Romano. A “Carta” se destina também a libertar pessoas cristãs das amarras do legalismo e do ritualismo, o que estava gerando divisões e separações na convivência com “os de fora”. Muros, não; pontes, sim, devemos ser.

Nosso Deus age de forma libertadora. Logo após a saudação e o endereçamento, a “Carta aos Efésios” apresenta um magnífico hino de louvor, no qual o autor, entre tantas belezas espirituais, revela a ética de Deus, mistério de infinito amor. Deus “nos abençoou com toda bênção espiritual, em Cristo” (Ef 1,3), “nos escolheu, em Cristo” (Ef 1,4), “derramou abundantemente graça sobre nós” (Ef 1,6.8), “libertou-nos pelo sangue de Cristo e nos perdoou” (Ef 1,7), “nos fez conhecer o mistério da sua vontade” (Ef 1,9), “reuniu o universo inteiro para o levar à plenitude” (Ef 1,10), “em Cristo, segundo o projeto de Deus que tudo conduz” (Ef 1,11); “Deus nos conquistou (adquiriu) para o louvor da sua glória” (Ef 1,14). Destacamos os verbos de ação para enfatizarmos que o Deus da “Carta aos Efésios” é um Deus ético, que age para o bem de toda a humanidade, “Deus que age em favor de nós” (Ef 1,19) e de todos os seres vivos.

Por isso, Deus abençoa-nos, escolhe-nos, derrama sobre nós sua graça, liberta-nos, perdoa-nos, faz-nos conhecer seu projeto, “conhecer Deus profundamente” (Ef 1,17), ou seja, liberta-nos da ignorância, do fanatismo, de fundamentalismos, de moralismos. A utopia de Deus é reunir e estabelecer na comunhão o universo inteiro levando tudo à plenitude. Enfim, pelo agir ético de Deus somos conquistados, cativados por amor, para amar sem limites. Esta ética de Deus, que é puro amor, pode nos inspirar para sermos éticos como Deus é ético, ou seja, que nosso agir seja parecido com o agir divino, invocado sob tantos nomes.

Obs.: No próximo texto, continuaremos esta reflexão sobre a “Carta aos Efésios”.

20/06/23

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG - Set/2022

2 - Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

3 - Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Optamos por colocar entre aspas “Carta aos Efésios” ao longo do texto, porque em uma análise mais acurada constatamos que, de fato, não se trata de uma Carta e nem é destinada apenas à Comunidade Cristã de Éfeso.

 

terça-feira, 13 de junho de 2023

Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença. Por frei Gilvander

 Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença. Por frei Gilvander Moreira[1]

Capa do livrinho “CARTA AOS EFÉSIOS”: andar no amor na Casa Comum – Toda a Criação respira Deus. CEBI/MG, 2023.

Vem aí setembro, o mês da Bíblia! Por que e para quê? Primeiro, porque dia 30 de setembro é dia de São Jerônimo (342-420), o tradutor da Bíblia para o latim, a Vulgata. Como profundo conhecedor das línguas hebraica, grega e latim e das culturas dos povos semita, grego e romanos e um dos pilares da patrística, São Jerônimo colocou a Bíblia na linguagem popular, acessível ao povo, o latim na época. Segundo, porque, com a Opção pelos Pobres e a Dei Verbum, um dos ótimos Documentos do Concílio Vaticano II, a leitura da Bíblia a partir dos pobres, de forma comunitária, militante, (macro)ecumênica e transformadora, foi incentivada e vem sendo feita há cinquenta anos. Inicialmente com Dia da Bíblia e sucessivamente, Tríduo Bíblico, Semana Bíblica e, assim, pouco a pouco, setembro se tornou o Mês da Bíblia.

Em Minas Gerais, há 25 anos, um grupo de biblistas do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI-MG)[2] publica anualmente um livrinho que busca ser um Texto-Base sobre o livro bíblico do mês da Bíblia: setembro. Em 2023, todas as pessoas e comunidades cristãs são convidadas a refletir e inspirar a caminhada, especialmente no mês de setembro, sobre a Carta aos Efésios. O livrinho do CEBI-MG tem como título “CARTA AOS EFÉSIOS”: andar no amor na Casa Comum – Toda a Criação respira Deus.[3] O livrinho é composto de seis artigos: 1) “Carta aos Efésios”: Carta? Homilia ou Tratado Teológico?, de Iêda Santos Leite; 2) A “Carta aos Efésios”, uma teologia para a resistência, de Western Clay Peixoto; 3) “Carta aos Efésios”: relações humanas baseadas no amor, de Lúcia Diniz; 4) Diálogo Inter-religioso na Carta as Efésios e no N.T., de Vânia Fonseca; 5) Agir ético libertador na “Carta aos Efésios”, de Gilvander Luís Moreira; 6) Mística e militância a partir da “Carta aos Efésios”, de Denis Wilson Silva.

Aqui partilho com você um primeiro aperitivo do artigo nosso que compõe o livro: Agir ético libertador na “Carta aos Efésios”. Leremos a “Carta aos Efésios”[4] buscando compreender, primordialmente, a dimensão ética deste texto bíblico, ancorando nossa interpretação na seguinte questão: Que tipo de ética, de agir, de atitudes, enfim, que postura cristã a “Carta aos Efésios” nos exorta a colocar em prática? Para respondermos a esta questão precisamos observar, atentamente, o tecido verbal deste texto bíblico.

Agir ético faz a diferença. Muitas vezes, influenciado/a por uma perspectiva excessivamente psicológica lemos os textos bíblicos buscando, consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, modelos de personagens bíblicos que devemos imitar. Na perspectiva profética e sapiencial, mais do que imitação de personagens bíblicos (aliás, não somos papagaios que imitam outras pessoas!), o que os textos bíblicos pedem de nós é um agir ético, como o defendido no Evangelho de Lucas, onde a prática é decisiva. Isto é comprovado na obra lucana (Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos) com expressões, tais como: "Façam coisas para provar que vocês se converteram..." (Lc 3,8a); "As multidões, alguns cobradores de impostos, alguns soldados, ... perguntam a João Batista: "O que devemos fazer?" (Lc 3,10.12.14). Um escriba pergunta a Jesus...: "O que devo fazer para receber em herança a vida eterna?" (Lc 10,25) e depois de contar o "episódio-parábola" do Bom Samaritano, Jesus responde dizendo: "Vá, e faça a mesma coisa" (Lc 10,37). Muitos outros textos do Evangelho de Lucas podem ser evocados para respaldar a conclusão de que Lucas dá uma grande prioridade ao agir libertador. No primeiro versículo de Atos dos Apóstolos está: “... tudo o que Jesus começou a fazer e a ensinar” (At 1,1). A prática é recordada antes do ensinamento, o que quer dizer que acima da ortodoxia está a ortopráxis, a prática certa e libertadora. Mais importante do que ter uma “opinião certa” é ter uma prática correta, libertadora. Lucas quer dizer que uma das grandes características das primeiras comunidades é que elas eram comunidades de ação, de prática, de testemunho. Não se trata de qualquer tipo de ação, mas de ações solidárias e libertadoras.

Na Carta de Tiago se afirma, de forma enfática, que “a fé, sem obras, é completamente morta” (Tg 2,17.26) e em muitas outras passagens bíblicas. Por exemplo, no discurso final do Evangelho de Mateus (Mt 25,31-46) isso fica evidente em perguntas implícitas provocadoras que remetem diretamente para o nosso agir ético: “Eu estava com fome. Vocês me deram de comer? Eu era estrangeiro. Vocês me acolheram em casa? Eu estava nu. Vocês me vestiram? Eu estava doente. Vocês cuidaram de mim? Eu estava preso. Vocês me visitaram?” (Mt 25,35-36). Prestemos atenção no tecido verbal: “dar, acolher, vestir, cuidar e visitar”, todos verbos de ação. A pessoa é reconhecida como justa – “os justos” (Mt 25,37) – se agir acolhendo os clamores dos últimos: “Toda vez que vocês FIZEREM isso a um dos menores (injustiçados/as) de meus irmãos, foi a mim que o FIZERAM” (Mt 25,40): o evangelista Mateus faz questão de pôr na boca de Jesus Cristo tal afirmação.

Nunca me esqueço de um dos meus professores do mestrado em exegese bíblica, o da língua hebraica, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, que nos disse, ao terminarmos três anos de estudos intensivos da língua hebraica: “Estamos terminando o curso da língua hebraica, a língua por excelência dos profetas e da ética”. É o agir ético que faz a diferença na fidelidade ao Deus Javé, solidário e libertador, “Deus, que é rico em misericórdia” (Ef 2,4). O Novo Testamento é escrito em grego, mas carrega toda a herança judaica do agir conforme a vontade de Deus e não apenas do falar, louvar, celebrar culto a Deus.

Importa recordar que ética é muito mais que moralidade, a qual muitas vezes se restringe à postura de juiz/a que pensa estar na arquibancada da vida de onde se põe a julgar: “sou a favor disso, contra aquilo...” Ética diz respeito ao agir humano, está muito além de boas intenções. Enfim, veremos que a “Carta aos Efésios” exorta-nos a um agir humano libertador, humanizador e integrador com todos os seres vivos e a biodiversidade, em uma relação fraternal, justa, solidária e respeitosa geradora de condições objetivas que garante a vida em todas as suas expressões.

Obs.: No próximo texto, continuaremos esta reflexão na “Carta aos Efésios”.

13/06/23

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[3] Caminho para adquirir o livrinho Texto-Base sobre Carta aos Efésios: https://cebimg.org.br/2023/06/07/mes-da-biblia-2023-carta-aos-efesios-tudo-respira-deus-no-cebi-mg/

[4] Optamos por colocar entre aspas “Carta aos Efésios” ao longo do texto, porque em uma análise mais acurada constatamos que, de fato, não se trata de uma Carta e nem é destinada apenas à Comunidade Cristã de Éfeso.