Que tipo de fé ter? Por Frei Gilvander Moreira[1]
Considerando
o que diversos marxistas e a Teologia da Libertação compreendem sobre a questão
religiosa e como lidar com a dimensão religiosa, podemos enunciar alguns pontos
imprescindíveis para reflexão e práxis sobre a questão religiosa na luta pela
terra, pela moradia e por outros direitos humanos fundamentais. Primeiro, em
todas as religiões e suas igrejas enquanto instituições é hegemônica a
tendência conservadora que resulta em líderes religiosos, sejam eles padres,
pastores ou similares, cúmplices do poder político e econômico da ordem
estabelecida. No caso das sociedades capitalistas, são cúmplices das opressões
perpetradas pelo capitalismo e pelos capitalistas. E os funcionários das
religiões e igrejas se beneficiam do poder também. Segundo, na origem do
cristianismo, no baixo clero e atualmente em uma minoria de padres, pastores e
leigos/as adeptos da Teologia da Libertação há, sim, compromisso com as causas
de emancipação das classes trabalhadora e camponesa. Terceiro, o peruano José
Carlos Mariátegui (1894-1930) tem razão ao buscar aproximar os cristãos libertários e os marxistas
socialistas, pois há, sim, algum tipo de fé nas pessoas militantes
revolucionárias. Não está ainda demonstrado historicamente que com a superação
das relações sociais do capital e da exploração humana, quando o ser humano
tiver a história nas mãos, não haverá mais necessidade de expressões
religiosas. Em Cuba, por exemplo, parte do povo cubano é religioso, frequenta
igrejas, mesmo sendo socialistas comunistas. Quarto, se nossa preocupação maior
é pedagógica, ou seja, como lutar, caminhar e marchar rumo à emancipação
humana, nos parece um erro tático grave não lidar de forma emancipatória com a
dimensão religiosa das/os trabalhadoras/es e dos/as camponesas/es. Ignorar ou
contestar a dimensão de fé das pessoas com discursos racionais joga mais água
no moinho das igrejas e correntes religiosas conservadoras, reacionárias,
espiritualizantes e moralizadoras. “Parece
muito provável que a revolução social em nosso continente – aliás, como a
história tem provado – conte em suas fileiras com companheiros que professam
alguma religião, assim como qualquer um pode ter a religião que lhe interessar
ou não ter nenhuma” (IASI, 2011, p. 146-147). Sem a participação do povo
que frequenta as igrejas (neo)pentecostais e os estádios de futebol não teremos
luta revolucionária que nos leve à emancipação humana. Em Havana, no triunfo da
revolução cubana, Fidel Castro, ao discursar dia 1º de janeiro de 1959, “dizia da fé que sempre teve no povo de Cuba,
que era, em suas palavras, mais que uma fé, uma confiança” (IASI, 2011, p.
152). Fé no sentido bíblico não é crença em dogmas e doutrinas, mas trata-se de
coragem e confiança existencial em si mesmo, nas/os companheiras/os e em um
mistério maior que nos envolve. Quando, por diversas vezes, nos relatos de
milagres nos evangelhos da Bíblia se coloca na boca de Jesus: “Tua fé te salvou”, não se está querendo
afirmar nenhuma crença em dogmas e doutrinas, mas está se afirmando uma postura
existencial de coragem e confiança na luta pessoal, comunitária ou coletiva de
que é possível superar os problemas por maiores que pareçam. ‘Fé na luta!’, digamos como dizem as/os
militantes do MST, dos Movimentos Sociais e as/os agentes das pastorais sociais.
Antônio Julio de Menezes Neto
corrobora nossa interpretação de Marx relativo à questão religiosa, ao
ponderar: “Marx realiza uma crítica
concreta, baseada em estudos acerca de relações sociais e econômicas históricas
e, não, uma crítica abstrata da religião” (MENEZES NETO, 2012, p. 28). A Comissão
Pastoral da Terra (CPT), pela sua práxis, realiza uma espécie de
‘religiosização da política’, conforme afirma Cândido Grzybowski: “A religiosização de categorias políticas se
exprime no uso político de símbolos cristãos, como a cruz nos acampamentos, e
na realização de atos religiosos com fins políticos, como missas, romarias da
terra, etc.” (GRZYBOWSKI, 1987, p. 68).
Como explicitação
concreta da perspectiva religiosa questionada por Karl Marx, corroborando
podemos citar o seguinte episódio: um cozinheiro dos frades carmelitas em
Houston, Texas, nos Estados Unidos, nos disse, em agosto de 1997: “Sou latino-americano, mas participei da
guerra do Vietnã defendendo os Estados Unidos e Deus”. Enquanto nos narrava
sua experiência na guerra do Vietnã, ele retirou do bolso uma nota de dólar,
mostrou-nos e disse: “Está escrito
aqui “we trust in God” (= nós acreditamos em Deus). Lá no Vietnã era a guerra
entre o mundo ateu e o mundo crente, a guerra entre Deus e o demônio. Estávamos
lá defendendo não apenas os Estados Unidos, mas Deus. Queríamos evitar que os
ateus comunistas e o mal tomassem conta do mundo”. Ao ouvir isso,
boquiaberto, entendemos que ao se declarar teoricamente ateu, o ‘socialismo
real’ traiu a filosofia de Karl Marx, pois entregou um argumento de ouro aos
capitalistas que, ateus na prática, se sentem defensores de Deus na terra, mas
na realidade são arautos de um ídolo: o deus capital/mercado.
As necessidades materiais são o que ‘dá mais liga’ para a coesão interna entre os Sem Terra ou Sem Teto em uma ocupação até a conquista da terra. O cultivo dos valores de uma fé libertadora, segundo a Teologia da Libertação, tem certo grau de fôlego para sustentar a perseverança na luta pela terra, pela moradia e por outros direitos humanos fundamentais na perspectiva de um projeto socialista. No Brasil e na América Latina, com um povo religioso, é impossível fazer revolução socialista sem a Bíblia interpretada considerando os oprimidos da história e ignorando a dimensão de fé das pessoas, mas fé libertadora no Deus que age nas entranhas da história, que combina a fina flor da filosofia de Marx com a fina flor da Teologia da Libertação. A fé, em si mesma é algo ambíguo, pode emancipar ou explorar. No fundo, não basta ter fé. Depende que tipo de fé se cultiva. A questão central não é ter ou não ter fé, mas que tipo de fé ter ou não ter. Importa incorporar uma fé emancipadora como instrumento que pode levar à conscientização do valor da vida, a não submissão às condições de opressão, pois de tanto obedecer adquire-se reflexos de submissão. Trata-se de ter a fé de Jesus Nazaré e não apenas ter fé em Jesus.
Referências.
GRZYBOWSKI,
Cândido. Caminhos e Descaminhos dos
Movimentos Sociais no Campo. Petrópolis: Vozes/FASE, 1987.
IASI,
Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e
emancipação. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
MENEZES
NETO, Antonio Júlio de. A Ética da
Teologia da Libertação e o Espírito do Socialismo no MST. Belo Horizonte:
UFMG, 2012.
29/3/2022.
Obs.: As
videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1
– Filme PEDRA EM FLOR, de Argemiro Almeida, 1992. CEBs e Leitura Popular da
Bíblia. Frei Carlos Mesters
2 - Retomada
Indígena Xukuru-Kariri - Comunidade indígena Arapoã Kakyá -, em Brumadinho, MG
– Vídeo 1
3 - Veja
a Comunidade indígena Arapoã Kakyá (Retomada Indígena Xukuru-Kariri),
Brumadinho/MG – Vídeo 2
4 -
“Quando pomos pé num território somos raiz forte.” Arapoã Kakyá Xukuru-Kariri
Brumadinho/MG – Vídeo 3
5 - “A
terra é nossa mãe; nós, os filhos dela”. Comunidade indígena Xukuru-Kariri,
Brumadinho/MG–Vídeo 4
6 - Frei
Carlos Mesters: CF/22 -Fraternidade e Educação. “Fala com sabedoria, ensina com
amor”(Pr 31,26)
7 - Curso
Teologias da Libertação para os nossos dias – Aula 02. Por Marcelo Barros -
29/7/2020
8 -
COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei
Gilvander e Argemiro
9 -
"Paulo em Gálatas: Que tipo de fé liberta?" - Para o Mês da
Bíblia/2021 - Frei Gilvander -13/8/2021
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor
da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no
SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira
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