quarta-feira, 31 de março de 2021

Páscoa em tempos de pandemia. Por Frei Gilvander

 Páscoa em tempos de pandemia. Por Frei Gilvander Moreira[1]



 

Com quase 3 mil por dia, já ultrapassando no Brasil 312 mil mortos pela pandemia da covid-19, potencializada pela política de morte (necropolítica), planejada e executada para ser genocida, sob coordenação do antipresidente e de todo o desgoverno federal com a cumplicidade da maioria dos senadores e deputados/as, e do Supremo Tribunal Federal (STF), o povo brasileiro está afundado em uma das mais brutais “sexta-feira da paixão” da história do Brasil. Como celebrar a Páscoa de Jesus Cristo e nossa páscoa em meio a milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas? Como e onde encontrar forças e luzes para construirmos um domingo de ressurreição com condições de vida digna para todos/as? Como ter esperança de uma nova aurora em meio a tantas trevas?

Para encontrarmos forças e luzes para superarmos a gravíssima noite escura do capitalismo, da pandemia e do desgoverno fascista precisamos de vários instrumentos. Entre eles um se destaca: o de reconhecer as mais profundas lições da história.  Vejamos: segundo o Evangelho de Mateus, em Mt 2,1-12, após driblar o rei Herodes e encontrar o menino Jesus nascido na periferia, no meio dos marginalizados, os magos “seguiram por outro caminho”, não o caminho que passava pelo rei Herodes, opressor, repressor, sanguinário, genocida. Não podemos ser contaminados pelos complexos da impotência e da pequenez, disseminados pela ideologia dominante, que levam as pessoas a dizerem: “Não podemos fazer nada. Só Deus pode. Não temos poder de mudar esta situação!” Podemos transfigurar a realidade de morte, sim, muito mais do que às vezes pensamos. Em um contexto de grande opressão e de superexploração, onde as pessoas justas e inocentes são violentadas e veem os injustos tramando todo tipo de mal, há pessoas justas que tendem a passar para o lado dos opressores. Na Bíblia, o Salmo 72 no versículo 15 alerta: “Mas se eu falar como eles, se eu pensar e agir como eles, estarei traindo os nossos pais”, nossos ancestrais, os profetas, as profetisas, os/as mártires. É hora de nos voltarmos para os Povos Originais – indígenas -, Comunidades Tradicionais e para os Movimentos Sociais Populares que apontam o caminho: nos irmanarmos aos injustiçados/as e participar de suas lutas por todos os direitos. Perceber que há luz não apenas no fim do túnel, mas no meio do túnel também. É hora de ouvir e levar a sério as orientações e os alertas dos/as infectologistas/os, dos/as epidemiologistas e das pessoas que de fato estão construindo uma sociedade justa.

Há quase 2.000 anos ecoa uma notícia revolucionária dada em primeira mão por Maria Madalena, “apóstola dos apóstolos”, mulher que amava muito, era muito solidária e lutava contra toda e qualquer injustiça. Irradiando alegria, a partir do túmulo de Jesus de Nazaré, Maria Madalena saiu correndo e anunciando por todos os cantos e recantos: “Jesus está vivo, ressuscitou!” A Ressurreição de Jesus marca a vida das comunidades, animando-as no sentido de que o poder da morte não tem a última palavra. Bateram em ferro frio os chefes dos podres poderes da religião, da política e da economia, ao pensar que condenando Jesus de Nazaré à pena de morte, poriam fim ao movimento popular e religioso de fraternidade real, testemunhado e ensinado pelo Galileu da periferia da Palestina. Celebrar a Páscoa de Jesus de Nazaré é momento oportuno para revigorar nossa fé no Deus da vida, fé na humanidade, fé nos oprimidos e explorados, fé na Mãe Terra, na irmã água, em todas as fontes de vida e fé em nós mesmos. É também momento propício para celebrarmos todas as lutas do passado e do presente. Lutas por direitos fundamentais. Lutas que demonstram que só perde quem não se compromete com a realização dos desafios coletivos por direitos ou simplesmente desiste da luta. Quem persevera na luta dos Movimentos Sociais Populares conquista direitos, mais cedo ou mais tarde. O preço da liberdade é a vigilância constante.

O sentido da Páscoa não pode ser privatizado por expressões religiosas que desencarnam a fé cristã e amputam a dimensão social da fé judaico-cristã. A fé na ressurreição de Jesus Cristo não garante apenas vida após a morte. É preciso não esquecer que a Páscoa Judaica, origem da Páscoa Cristã, diz respeito à libertação dos povos escravizados no Egito pelo imperialismo dos faraós. Páscoa é passagem da escravidão para a libertação, nos vários aspectos da vida humana. Por isso, Páscoa envolve reunir os injustiçados, atravessar os “mares vermelhos”, marchar rumo à terra prometida – terra partilhada, democratizada e socializada – e enfrentar os grileiros e especuladores de terra lutando para conquistá-la. A Páscoa cristã atesta que Jesus de Nazaré, mesmo sendo inocente e justo, foi condenado pelos podres poderes da religião, da economia e da política à pena de morte, mas ressuscitou e está vivo em nós e em todos/as que lutam pela construção do Reino de Deus a partir do aqui e do agora. O sonho ensinado e testemunhado por Jesus de Nazaré jamais será morto. Os opressores serão jogados na luta de lixo da história. Entrará para a história quem “combater o bom combate” e perseverar na fé de Jesus Cristo, colocando em prática a dimensão social do Evangelho.

A igreja é constituída por uma grande unidade na diversidade e muitas vezes com graves contradições internas. Lamentavelmente, estamos colhendo as consequências de 34 anos de pontificado de João Paulo II e Bento XVI que incentivaram a privatização da fé, a adoção de espiritualismos, dogmatismos, moralismos marcados pela desencarnação da fé cristã e amputação da dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo. Essas posturas religiosas empurraram o povo para os braços dos fascistas e genocidas, para políticas de morte. Por outro lado, graças a Deus, nosso querido papa Francisco coordena e anima a igreja no sentido da missão libertadora, (macro)ecumênica e transformadora, reafirmando a Opção pelos Pobres, a inculturação e animando o compromisso de todas as pessoas de boa vontade com a construção de uma sociedade do Bem Viver e Conviver. As Encíclicas Laudato Sí (Louvado Sejas) e Fratelli Tutti (Todos/as somos irmãos/ãs) apontam o rumo: compromisso com construção uma sociedade justa economicamente, o que passa pela superação do capitalismo, que é uma máquina de moer vidas; uma sociedade com sustentabilidade ecológica, o que passa necessariamente por colocar em prática o princípio da Ecologia Integral garantindo, assim, condições objetivas que garantam a preservação de todos os biomas.

Com a ressurreição de Jesus ficou decretado que as utopias jamais morrerão, os sonhos de libertação jamais serão pesadelos, a luta dos oprimidos e injustiçados será sempre vitoriosa (ainda que custe muito suor e sangue) e as forças da Vida terão sempre a última palavra. Por mais cruéis que sejam, todas as tiranias, opressões, corrupções e guerras passarão.  O papa Francisco tem claramente anunciado a defesa da vida que passa pela superação do capitalismo, “sistema de morte”.[2] 

 31/03/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Sentido da Páscoa: as utopias jamais passarão! Frei Gilvander rumo ao XV Intereclesial das CEBs

2 - Palavra Ética, na TVC/BH, c/ Frei Cláudio van Balen: Deus, Páscoa e Religião. 12/04/14

3 - Na missa de Páscoa do Padre Nelito Nonato Dornelas, em Abre Campo, MG, 05/2/2021: amor, justiça e fé

4 - Dom Pedro Casaldáliga, o Profeta que viveu e lutou entre nós, faz sua Páscoa definitiva - 08/8/2020

5 - Dom Vicente em missa de Páscoa no Córrego do Feijão, Brumadinho/MG. Vídeo 2. 21/4/19



 

 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

 

quarta-feira, 17 de março de 2021

Lockdown Nacional e Auxílio Emergencial Justo, já! Por Frei Gilvander

 Lockdown Nacional e Auxílio Emergencial Justo, já! Por Frei Gilvander Moreira[1]

Feliz quem ouve os sinais dos tempos e dos lugares e se orienta bem no jeito de conviver e lutar pela construção de uma sociedade justa. Após um ano de pandemia do novo coronavírus, o que vemos no Brasil? O país com mais de 280 mil mortos pela covid-19, isso sem contar os casos de subnotificação (cerca de 20%), os 250 mil mortos de câncer por ano e milhares de outras mortes por outras causas agravadas pela pandemia. O número de mortos aumenta cotidianamente, já ultrapassando 2 mil mortos ao dia, e cresce de forma espantosa o número de pessoas na fila de espera por um leito hospitalar e por UTI[2]. Muitas destas pessoas morrem enquanto esperam as vagas, pois há colapso do sistema de saúde tanto público quanto privado na grande maioria dos 5.570 municípios brasileiros. O Governador do Piauí, Wellington Dias, coordenador da Frente de Governadores para o combate à pandemia, informou dia 12/03/2021 que já existem mais de 40 mil pessoas com covid-19 na fila de espera por UTI em todo o Brasil. Isso é aviso prévio de morte. O número de infectados cresce dia a dia. Novas cepas e variantes do coronavírus surgem e se mostram muito mais perigosas. A Fiocruz defendeu, dia 16/03/2021, no Boletim Extraordinário do Observatório Covid-19, Lockdown nacional com a interrupção de atividades não essenciais, incluindo a suspensão de aulas presenciais e um toque de recolher nacional de 20 horas às 6 horas, além da ampliação do uso de máscaras. De forma absurda, covarde e injusta, o governo decretou o fim, em 31 de dezembro de 2020, da política pública de auxílio emergencial aos milhões de famílias empobrecidas e em extrema miséria. Assim o governo não contribui com as famílias necessitadas e nem apoia as pequenas e médias empresas. O “ajuste fiscal” segundo os ditames do mercado capitalista idolatrado continua sendo o tabu que não pode ser questionado, dizem. Quem disse que deve ser “ajuste fiscal acima de tudo”? Não. Acima de tudo deve estar a vida com condições objetivas para viabilizá-la. Na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186, a da maldade, congelaram os salários de funcionários públicos e professores até 2036 em nome do famigerado “ajuste fiscal”, e o Congresso Nacional, sob direção do Centrão-direita, se faz cúmplice da proposta covarde do desgoverno federal de pagar apenas uma migalha de 250 reais de auxílio emergencial por apenas três meses. Isso é, de fato, uma decisão política para matar milhões de pessoas no Brasil e que demonstra que realmente está em curso política de morte (necropolítica) coordenada pelo desgoverno federal fascista e genocida, com a cumplicidade do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF).

Na Bíblia os bons pastores e boas pastoras, verdadeiros/as profetas e profetisas são saudados/as como mensageiros do Deus Javé, Deus da vida, solidário e libertador. Importante ressaltar que na Bíblia pastores, profetas e profetisas não dizem respeito apenas à dimensão religiosa da vida, mas se referem às lideranças de todas as áreas da vida social que têm alguma responsabilidade sobre a vida do povo: sacerdotes, reis, escribas (doutores), governantes (políticos), líderes da economia (saduceus) etc. Entretanto, são execrados os falsos profetas e os pastores que se apresentam em pele de ovelha, mas na prática agem como lobos ferozes. A ira santa divina não os tolera. Por isso, Jesus Cristo “chutou o pau da barraca” e expulsou os vendilhões que transformando o templo, lugar sagrado, em um mercado. O território brasileiro com todo o povo e os biomas é nosso lugar sagrado que está sendo profanado por políticos fascistas e genocidas.



No enfrentamento à pandemia temos que reconhecer que os/as cientistas, pesquisadores/as das áreas da saúde pública – epidemiologistas, infectologistas, sanitaristas, microbiologistas etc. – estão sendo na prática ótimos/as pastores/as, verdadeiros/as profetas e profetisas. Além de descobrir vacinas e demonstrar cientificamente os caminhos que podem nos levar à superação da pandemia, estão roucos de tanto tentar educar o povo e alertar as autoridades sobre quais políticas públicas devem ser implementadas.

Neste cenário e contexto, os/as melhores cientistas, professores/as e pesquisadores/as da área da saúde pública estão gritando e a Frente de Governadores já está exigindo do Governo Federal medidas mais efetivas no rumo de Lockdown Nacional por pelo menos 21 dias, como medida sanitária necessária para reduzir a transmissão do coronavírus e impedir a continuidade da aparição de outras cepas e variantes mais letais. De fato, não dá mais para tolerar o desgoverno federal continuar na postura negacionista e alimentando a disseminação do coronavírus e piorando dramaticamente a pandemia. Não basta Lockdown em vários estados e em muitos municípios. Tornou-se necessário um Lockdown Nacional, ou seja, paralisação das atividades no país, com o povo circulando o mínimo possível e colocando em prática todas as medidas de precaução – uso correto de máscara, higienização das mãos, distanciamento corporal e social -, deixando em funcionamento apenas as áreas de atividade essencial, entre as quais não deve estar exploração minerária, como injustamente decretou o desgoverno federal, subserviente aos interesses da mineradora Vale S/A. Apenas essa medida de lockdown em todos os estados e nos 5.570 municípios poderá reduzir a circulação do coronavírus, isso diante do cenário marcado pelo fato de que a maioria da população não será vacinada nos próximos meses, porque o desgoverno federal tramou para não comprar vacinas no momento oportuno que era o 2º semestre de 2020. Os países governados de forma justa, principalmente por mulheres, já fizeram Lockdown Nacional como medida necessária para abreviar a superação da pandemia.

Atenção! Para que uma política de Lockdown seja efetiva é preciso garantir as condições da maioria do povo ficar em casa. Maioria essa que hoje é submetida a jornadas de trabalho excessivas, que não têm vínculos trabalhistas, que é obrigada a se aglomerar no transporte coletivo lotado. E o presidente da República, ao invés de subestimar a Pandemia e as medidas de prevenção, deve ser o primeiro a defender que o povo fique em casa e siga os protocolos sanitários. Isso deve valer também para os governadores, prefeitos, agentes públicos como policiais, entre outros.

Importante lembrar que junto com o Lockdown Nacional se faz necessária a retomada de todas as políticas públicas do governo federal implementadas em 2020, entre as quais o auxílio emergencial justo e digno! Se R$600,00 já era pouco, R$250,00 por apenas três meses é inadmissível, pois é apenas maquiagem para esconder decisão política de matar milhões de fome, na miséria. O auxílio emergencial precisa garantir condições mínimas de alimentação e de pagamento das despesas de uma família. O apoio financeiro às pequenas e médias empresas também é necessário. E as grandes empresas precisam cumprir sua responsabilidade social e investir muitos recursos no tecido social para a superação da pandemia. A classe política ficar acendendo uma vela para a vida do povo e um holofote para a economia capitalista só piora a pandemia. “Ninguém pode servir a dois senhores. Não dá para servir a Deus e ao capital”, profetisa o Evangelho de Mateus (Mt 6,24). Ah! Torna-se necessário também o corte de 50% nos autos salários da classe política nos três poderes (judiciário, legislativo e executivo, em níveis municipal, estadual e federal) e nas empresas também. Os 50% dos autos salários no Brasil dão para garantir a alimentação de milhões de brasileiros até o fim da pandemia. No Brasil, já passou da hora de taxar grandes fortunas, como ocorre já em alguns países no mundo. É preciso também taxar de forma justa as heranças. Eis alíquotas de imposto sobre herança: França (60%), Japão (55%), Alemanha (50%), Inglaterra (40%) e Estados Unidos (40%). No Brasil, o imposto sobre herança tem alíquota média de apenas 3,86%. Após a morte da princesa Diana, 40% da riqueza dela passou para o erário público da inglês por causa da justa taxação sobre herança na Inglaterra.

Portanto, apesar da gravíssima situação imposta pela pandemia do novo coronavírus, seus impactos podem ser minimizados com a adoção de políticas públicas justas que protejam a população como um todo, os empregos e as pessoas em situação de vulnerabilidade social. Recursos existem, é só aplicá-los de forma justa, ética e responsável. Vida em primeiro lugar![3] 

17/03/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Margareth Dalcomo, da Fiocruz: "Teremos o março mais triste de nossas vidas." 14/3/2021

2 - "Não tenho ar": o desespero de brasileiros na semana mais letal da pandemia - Fantástico - 07/3/2021

3 - Padre Eduardo César: "Cristão que é cristão não se alia a projeto armamentista." 05/3/2021

4 - Bolsonaro é “imoral” e “genocida”, afirma o Padre Adauto Tavares, da Paraíba, em missa – 04/03/2021

5 - Clamor de Dom Mauro Morelli por "Vacina Já para todos/as" e por "Vida acima de tudo" – 03/03/2021

6 - Dr. Fabiano Hueb Menezes, de Uberaba, MG: informe vital sobre coronavírus e uso da máscara –27/02/21



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Unidade de terapia intensiva.

[3] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

 

quarta-feira, 10 de março de 2021

Mulheres na luta sempre, na Bíblia e hoje. Por Frei Gilvander

Mulheres na luta sempre, na Bíblia e hoje. Por Frei Gilvander Moreira[1]



Todo dia é dia de mulher, mas o mês de março é especialmente o Mês das Mulheres, porque dia 8 de março se tornou Dia Internacional de Luta das Mulheres. Na União Soviética, ainda antes da Revolução Soviética de 1917, mulheres camponesas fizeram muitas lutas por terra, pão e liberdade, o que fez eclodir a Revolução socialista de 1917, e nas repúblicas socialistas soviéticas, todo ano, o dia 08 de março passou a ser celebrado como o Dia das Mulheres. Os Estados Unidos tentaram apagar essa história e inventaram uma falsa história que diz ser o dia 8 de março como tendo sido iniciado por mulheres trabalhadoras estadunidenses, o que não é verdade. A maior homenagem que uma mulher pode receber é respeito, admiração e amor. “Não só flores, mas respeito”, exigem as mulheres. “Não apenas nos deseje “feliz dia”. Levante-se e lute conosco!”, bradam as mulheres lutadoras. Lamentavelmente, durante a pandemia do novo coronavírus, houve um aumento da violência contra as mulheres, que ceifa a vida de 5 mulheres por dia, no Brasil, e,  assim sendo, verificamos  que o feminicídio também está crescendo. Em 2018, por exemplo, 4.519 mulheres foram assassinadas, o que equivale a dizer que a cada duas horas uma mulher foi assassinada no Brasil.

Ao longo da história da humanidade, o patriarcalismo foi hegemônico em muitos períodos e lugares, proibindo a mulher de participar da vida pública. Entretanto, desde os primórdios até hoje, as mulheres chegam para ficar. Mesmo sem serem notadas, sem serem contadas, muitas vezes silenciadas, as mulheres seguem atuantes nas comunidades. É preciso vasculhar os textos da história, perceber sua presença e descobri-las atuantes, ontem e hoje. O protagonismo do Movimento das Mulheres atualmente é crescente e tem sido imprescindível para que elas se unam, se organizem e sigam nas lutas. Isso nos faz recordar o protagonismo de inúmeras mulheres na Bíblia como, por exemplo, aconteceu com o Movimento de Mulheres liderado pelas filhas de Salfaad - Maala, Noa, Hegla, Melca e Tersa - que lutou pela superação do patriarcalismo. Que bom que o escritor bíblico conservou o nome delas. Elas viram a injustiça patriarcal que estava na lei segundo a qual a herança passava de pai para filho (não para filha - Cf. Num 27,1-11). Elas se rebelaram, pois estavam sendo excluídas do direito de ter terra, porque não tinham irmãos. E em uma manifestação deram o grito: "Queremos ter direito à propriedade da terra" (Nm 27,4). Depois de um discernimento em assembleia entenderam que esta seria a vontade de Deus e assim o movimento das mulheres da Bíblia conquistou mais um direito que lhes era negado. As mulheres passaram a receber a herança do pai, do mesmo modo que outros parentes próximos. Travava-se assim a luta pela igualdade e dignidade entre homem e mulher. O livro de Números termina com esperança, pois em Nm 36,1-12 aparecem os líderes da tribo de José alertando para o perigo de as mulheres casarem com homens de "fora da tribo", pois elas levavam consigo a terra da herança dos pais e, assim, passo-a-passo, a terra, herança dos pais, poderia ser perdida. O líder Moisés convoca uma assembleia e após discussão aprofundada chega-se à seguinte conclusão: "Mulheres, vocês podem casar-se com quem quiser, mas sempre dentro de algum clã da tribo do seu pai" (Nm 36,6). Assim se conquistava mais uma Lei para assegurar que a terra pertence a Deus e não deve ser vendida (Lev 25,23). Deus se irrita profundamente com quem sequestra a terra em suas mãos. Além das parteiras do Egito – Séfora e Fuá -, de Mirian, Débora, Judite, Rute, Jael e tantas outras do Primeiro Testamento, as mulheres referidas no livro de Números integram o grande Movimento de Mulheres de luta na Bíblia. 

E as mulheres no Movimento de Jesus? No Século I da Era Cristã, a função delas restringia-se à vida familiar, onde desde a infância se exercitavam na organização interna da casa (oikia). Como funcionava no interior das casas as assembleias, a mulher tinha um papel eclesial ativo. A criação de “Igrejas domésticas” possibilitou maior influência e participação da mulher.

Muitas interpretações acabaram por esconder a presença e o protagonismo das mulheres no Movimento de Jesus, antes e depois da Ressurreição de Cristo. Urge relativizarmos certas compreensões que foram colocadas na nossa cabeça e que não resistem a perguntas simples, mas profundamente eloquentes, como aquelas feitas por crianças. Diante do quadro da Santa Ceia, uma mãe, desejosa de fazer sua filha crescer em sensibilidade religiosa, diz: “Veja como é bonito Jesus reunido com os doze apóstolos ao redor da mesa, partilhando o pão!” A filha, de apenas seis anos de idade, retrucou subitamente: “Mamãe, por que só tem homens nesta mesa? Cadê as mulheres? Por que não está aí Maria, a mãe de Jesus? E Maria Madalena, que tanto amava Jesus, por que não está aí? E as crianças que Jesus tanto amava, cadê? Não acredito que Jesus fosse um homem machista capaz de excluir as mulheres e as crianças desse momento tão importante que é a ceia.” 

As questões colocadas por essa menina me fez contemplar com olhar mais penetrante o tradicional quadro da Santa Ceia e acabei constatando que o artista quis, de fato, provavelmente, indicar a presença de duas mulheres participando da Ceia de Jesus. Duas pessoas que participam da ceia não têm barba e nem bigode, traços característicos de todos os outros apóstolos. A ternura da fisionomia indica tratar-se de dois rostos femininos. Uma está à esquerda e outra, à direita de Jesus. Seriam a Mãe de Jesus e Maria Madalena? Ou seria a apóstola Júnia, a quem o apóstolo Paulo envia uma saudação no final da Carta à comunidade Cristã de Roma (cf. Rm 16,7)? Ou seriam mulheres atuantes que, desde a Galileia, seguiram Jesus (Lc 8,1-3), como discípulas, não arredando o pé de acompanhar Jesus até à Cruz? As mulheres foram as primeiras a fazer a experiência que as levaram à conclusão: Jesus ressuscitou e vive em nós. Sabemos os nomes de algumas delas: Maria (chamada Madalena), Joana (mulher de Cuza), Suzana, Maria (a mãe de Tiago o menor) e Salomé (Cf. Mc 15,40-41).

Na Galeria Nacional de Arte de Dublin, na Irlanda, dois quadros sobre o jantar dos/das discípulos/as de Emaús (Cf. Lc 24,13-35) me chamaram muito à atenção. Um quadro destaca que o jantar foi feito por uma mulher escravizada. Um facho de luz solar destaca a escrava preparando o jantar, enquanto os/as discípulos/as conversavam com Jesus na sala. Outro quadro mostra um jantar com muita fartura com a participação de quatro homens, duas mulheres, cão, gato, papagaio etc.

Segundo o livro de Atos dos Apóstolos, quem estava re-unido no momento em que acontece o primeiro Pentecostes sobre a Primeira Comunidade Cristã? Por dezenas de séculos foi colocado na cabeça do povo que o Espírito Santo tinha descido apenas sobre os doze apóstolos e Maria, a mãe de Jesus. Infelizmente, essa é uma interpretação reducionista e apologética que visa enfatizar a presença do Espírito Santo "quase" que somente nos líderes da Igreja Instituição. Rastreando o primeiro capítulo de Atos dos Apóstolos, concluímos que estavam re-unidos: “Os onze e Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago, e as outras que estavam com elas” (Lc 24,10); “algumas mulheres, Maria, a mãe de Jesus, e seus irmãos” (At 1,14); “Galileus” (At 1,11); Cléofas e sua esposa (“os discípulos” de Emaús – Lc 24,13.18). Em Lc 24,13 se diz que dois discípulos fugiram de Jerusalém após a condenação de Jesus à pena de morte. Um deles se chamava Cléofas (Lc 24,18). Em Jo 19,25-26 temos notícia de que Maria, mulher de Cléofas, estava ao pé da cruz, juntamente com outras mulheres. Um princípio de interpretação bíblica diz que a Bíblia se autoexplica, ou seja, uma passagem pode ser iluminada por outras passagens bíblicas. É difícil pensar que Cléofas iria fugir do centro de perseguição, deixando sua esposa sob risco de ser crucificada também, pois a presença dela ao lado de Jesus poderia atiçar a ira dos seus executores. Se Cléofas está acompanhado da sua esposa Maria, temos aqui mais uma vez as mulheres ajudando os homens a experimentar a Ressurreição de Jesus.

É, provavelmente, esse grupo, citado acima, especificado como "cerca de 120” (cf. At 1,15-26), que faz a experiência do Primeiro Pentecostes cristão, que escolhe Matias para ser apóstolo, em substituição de Judas Iscariotes, que também participa da Ascensão, do primeiro Pentecostes da comunidade crista. É muito provável que tenham existido muito mais mulheres no Movimento de Jesus e, sendo bem mais próximas de Jesus, do que muitas tradições religiosas insistem em negar.

Enfim, no passado e no presente, mulheres guerreiras fizeram e fazem a diferença em lutas pela construção de “um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”, como aponta Rosa Luxemburgo. Pela vida das mulheres, vacina para todos/as, já! E Impeachment, já![2]

10/03/2021

 Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Presença e atuação das Mulheres na Bíblia. Emancipação ou opressão? Diferentes leituras – 05/03/2021

2 - Mulheres Protagonistas na História do Povo de Deus, na Bíblia, na Monarquia. Mercedes Lopes/Vídeo 2

3 - Mulheres Discípulas de Jesus desde a Galileia, por Irmã Mercedes Lopes. Vídeo 3 - 14/05/2020

4 - Mulheres Protagonistas na Visão Geral da Bíblia (1ª Parte) - Irmã Mercedes Lopes, do CEBI. 9/5/2020

5 - Mulheres guerreiras do MLB no V Congresso Nacional do MLB em Recife. Vídeo 6 - 13/9/2019

6 - Mulheres denunciam violações de direitos humanos em Belo Horizonte: Cadê moradia? 22/04/13

7 - Ocupação Eliana Silva, em Belo Horizonte: mulheres guerreiras lutam pela casa própria. 30/09/2012



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.