Sem função social, a propriedade deixa de existir. Por Frei Gilvander Moreira[1]
De forma contundente, o jurista e ex-ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF) Eros
Roberto Grau[2]
afirma que a propriedade que não cumpre a função social não existe, e, como
consequência, não merece proteção, devendo ser objeto de perdimento, e não de
desapropriação. Textualmente, pondera Eros Grau, no livro A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica):
“[...] a propriedade dotada de função
social, que não esteja a cumpri-la, já não será mais objeto de proteção
jurídica. Ou seja, já não haverá mais fundamento jurídico a atribuir direito de
propriedade ao titular do bem (propriedade) que não está a cumprir sua função
social. Em outros termos, já não há mais, no caso, bem que possa,
juridicamente, ser objeto de direito de propriedade [...] não há, na hipótese
de propriedade que não cumpre sua função social “propriedade” desapropriável.
Pois é evidente que só se pode desapropriar a propriedade; onde ela não existe,
não há o que desapropriar” (GRAU, 1990, p. 316).
Na mesma linha, de forma incisiva, o jurista
italiano Pietro Perlingieri afirma
que o proprietário “(...) só recebeu do ordenamento jurídico
aquele direito de propriedade, na medida em que respeite aquelas obrigações, na
medida em que respeite a função social do direito de propriedade. Se o
proprietário não cumpre e não se realiza a função social da propriedade, ele deixa
de ser merecedor de tutela por parte do ordenamento jurídico, desaparece o
direito de propriedade” (PERLINGIERI, 1971, p.
71).
Na esteira da crítica à acumulação capitalista
moderna, a noção de função social da propriedade da terra foi inscrita na
Constituição de 1988 (CF/88) graças à luta dos movimentos sociais camponeses
desde as Ligas Camponesas que, após conquistarem o Estatuto da Terra, em 1964,
preparou o terreno para a inscrição na CF/88. A luta pela terra tem contribuído
para a construção de uma nova jurisprudência no Brasil, já existindo várias
decisões dos tribunais que reconhecem a ocupação de propriedades que não cumprem a função social como
um direito legítimo do povo, muitas vezes, sem-terra e sem-moradia. Portanto, a luta pela terra como
pedagogia de emancipação humana tem avançado também no meio jurídico criando a
concepção segundo a qual em uma ocupação coletiva de terra o que ocorre não é invasão, mas legítima
ocupação de propriedades que,
por não estarem cumprindo a função social, desocupadas e ociosas, perdem o
direito do pretenso proprietário. Sem função social, o proprietário perde o critério objetivo inerente à propriedade,
que é o direito de posse,
mantendo somente o critério subjetivo, que é o direito de ser indenizado pela perda do bem imóvel.
Como fruto da luta renhida pela terra, o
campesinato organizado conseguiu inscrever na Constituição de 1988 também o artigo 186, que
enumera os requisitos indispensáveis
para que a propriedade atenda à função social e que já havia sido incluído no Estatuto da Terra,
passa a ter a natureza jurídica de princípio fundamental. Pelo artigo 186 da CF/88 toda propriedade deve
cumprir, simultaneamente, conforme os graus de exigência fixados em lei – Lei
8629/ 93, quatro critérios: a) o aproveitamento racional e adequado: deve ser
produtiva; b) a utilização adequada dos recursos e preservação do meio
ambiente: não pode ser monocultura, por exemplo; c) a observância das
disposições que regulam as relações de trabalho: não pode haver desrespeito às
leis trabalhistas; e d) a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários
e dos trabalhadores: participação dos trabalhadores na renda da propriedade.
Além das
quatro exigências constitucionais para se cumprir a função social da
propriedade fundiária, outras duas exigências deveriam estar inscritas na
Constituição: um limite para a propriedade fundiária e a expropriação da
propriedade fundiária sem ter que pagar algo, pois sem um limite de área há
capitalistas proprietários de imensas propriedades, o que reforça a acumulação
de capital e ao pagar a terra ao ser desapropriada se premia quem não conferiu
função social à terra.
Necessário se faz em uma perspectiva histórica, considerando os camponeses injustiçados, analisar como foi concebida ao longo da história da humanidade a ideia de propriedade privada. O filósofo Jean Jacques Rousseau, por exemplo, analisa a criação da propriedade privada da terra como algo que instaura a desigualdade social. “A transformação da terra em propriedade privada absoluta e individual foi um fenômeno da civilização europeia, histórico, recente e datado, espalhado pelo colonialismo ao resto do mundo” (MARÉS, 2003, p. 133). Karl Marx e outros teóricos marxistas elucidam a noção de propriedade dos meios de produção, a terra no nosso caso, e o que isso significa na sociedade capitalista. Valiosa é a contribuição de István Mészáros (2007), que em A Educação para além do Capital, tece uma perspicaz análise. Diz ele: “Os defeitos específicos do capitalismo não podem sequer ser observados superficialmente, quanto mais ser realmente resolvidos sem que se faça referência ao sistema como um todo, que necessariamente os produz e constantemente os reproduz. A recusa reformista em abordar as contradições do sistema existente, em nome de uma presumida legitimidade de lidar apenas com as manifestações particulares [...] é na realidade apenas uma forma peculiar de rejeitar, sem uma análise adequada, a possibilidade de se ter qualquer sistema rival e uma forma igualmente apriorística de eternizar o sistema capitalista. “Mudança gradual” é disfarce para continuar o mesmo sistema. As mudanças são admissíveis apenas com o único e legítimo objetivo de corrigir algum detalhe defeituoso da ordem estabelecida, de forma que sejam mantidas intactas as determinações estruturais fundamentais da sociedade como um todo, em conformidade com as exigências inalteráveis da lógica global de um determinado sistema de reprodução” (MÉSZÁROS, 2007, p. 197). Enfim, uma das colunas mestras do capitalismo, a propriedade privada capitalista deixa de existir sem o cumprimento da função social, que é a coluna mestra da propriedade. Não basta apresentar escritura e registro da propriedade, sem a comprovação da função social desta propriedade. Portanto, ocupar propriedades que não cumprem a função social, no campo e na cidade, é um direito constitucional.
14/12/2021
Referências
GRAU,
Eros Roberto. A Ordem Econômica na
Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). São Paulo: Revista dos
tribunais, 1990.
MARÉS, Carlos Frederico. A
função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003.
MÉSZÁROS, István. A educação para
além do capital. In: MÉSZÁROS, István. O
desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo do século XXI. São
Paulo: Boitempo, p. 195-223, 2007.
PERLINGIERI, Pietro.
Introduzione allá problematica della proprietá. Camerino: Jovene, 1971.
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - FUNAI
VISITA Retomada Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG: mandioca, água e recepção à
FUNAI. Vídeo 1
2 - Injusto
despejar 30 famílias da Ocupação Vila Fazendinha em BH. Jogá-las na rua? Vídeo
4 - 11/12/21
3 - "O
Governo de MG e o TJMG vão despejar a Ocupação Vila Fazendinha em BH e nos
jogar na rua?" Vídeo 3
4 - Crianças e
mães CLAMAM para não ser despejadas na Ocupação Vila Fazendinha, Belo
Horizonte. Vídeo 2
5 - Quatro
conquistas em 4 dias e 4 noites de Acampamento na Porta do Palácio da
Liberdade. BH, 10/12/21
6 - Carreata
contra mineração da Larf e MIB na Serra do Pico Três Irmãos, em Mário
Campos/MG. Água, SIM!
7 - Ato
Público para engrossar o Acampamento na Porta do Palácio da Liberdade, BH/MG:
3ª noite – 9/12/21
8 - Ameaça de
despejo da Ocupação Vila Fazendinha, em Belo Horizonte, MG. Alto lá! Vídeo 1 –
08/12/21
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da
CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB
(Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Jurista brasileiro. Foi
ministro do STF de 2004 a 2010.
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